Compartilho a ótima reportagem de Cristiano Romero (Valor Econômico) sobre as batalhas silenciosas de Meirelles e da Diretoria do Banco Central para se manterem independentes ao longo do governo Lula. Como será no governo Dilma?
Autonomia ameaçada
Era dezembro de 2002 quando, numa sala da residência oficial da embaixada do Brasil em Washington, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assegurou ao ex-banqueiro Henrique Meirelles que, em seu governo, o Banco Central teria autonomia para conduzir a política monetária. Às vésperas de tomar posse, Lula vinha tendo dificuldade para encontrar um nome para o BC porque todos desconfiavam dos propósitos do governo petista. Meirelles pediu autonomia e Lula a concedeu.
Tendo renunciado ao mandato de deputado federal para o qual fora eleito meses antes, Meirelles assumiu o cargo em janeiro de 2003 e se tornou o mais longevo presidente da história do Banco Central brasileiro. Em agosto de 2004, deixou de dever obediência ao Ministério da Fazenda depois que o presidente Lula lhe concedeu, por medida provisória, status de ministro. Em oito anos, o BC, sob seu comando, superou duas crises, derrubou a inflação e colocou o Brasil na rota do crescimento sustentável. O caminho, no entanto, foi tortuoso.
Em vários momentos dessa trajetória, a autonomia do BC foi colocada à prova. Prevaleceu em vários setores do governo, ao longo do tempo, a ideia de que um “excesso de conservadorismo” da instituição impediu que a economia brasileira crescesse mais do que cresceu – na era Lula, o Produto Interno Bruto (PIB) avançou, em média, 4% ao ano, face a 2,47% da era Fernando Henrique Cardoso; em 2010, está crescendo 7,5%, a taxa mais alta em 24 anos.
Várias das crises que ameaçaram a autonomia do BC jamais vieram a público. Nos últimos dois meses, o Valor conversou com personagens que frequentaram a sala de reuniões do Comitê de Política Monetária (Copom) no período 2003-2010 e apurou algumas dessas histórias. É ali, no oitavo andar do edifício-sede do BC em Brasília, num ambiente frio, mas adornado por uma tela de 5 por 4 metros do pintor Cândido Portinari – “Descobrimento do Brasil”-, que o Comitê se reúne para decidir os destinos da economia brasileira, definindo, a cada 45 dias, a taxa básica de juros (Selic).
Os relatos, mantidos no anonimato graças ao chamado “dever fiduciário” de ex-integrantes do Copom, revelam que a autonomia do BC foi sempre muito frágil. Em 2004, por exemplo, temendo os constantes ataques de integrantes do governo, três diretores foram a Meirelles pedir as contas. Em 2005 e 2006, o então ministro da Fazenda, Antônio Palocci, montou uma operação para substituir Meirelles e dois diretores oriundos do mercado. Realizou parte do plano, mas sua própria demissão, em março de 2006, o impediu de concluí-lo.
Em 2008, não somente o emprego de alguns diretores esteve em risco, mas também a própria continuidade da política econômica adotada cinco anos antes. Naquele ano, o Ministério da Fazenda liderou um ataque persistente à autonomia do BC – mais recentemente, já na transição do governo Lula para o de Dilma Rousseff, a Fazenda tentou, novamente, enfraquecer o banco ao propor, nos bastidores, a extinção do status de ministro do qual goza hoje o presidente da instituição.
Os fatos mostram que, embora o BC tenha conseguido alcançar resultados positivos nos últimos anos, a ausência de autonomia formal limita sua ação, tornando-a mais onerosa para a sociedade. A desconfiança de que o Copom age sob pressão política faz o mercado duvidar do interesse do governo em combater a inflação. As evidências mostram que, quanto menor é a inflação por um período maior de tempo, menor é a taxa de juros exigida pelo mercado e, portanto, menor o custo de rolagem da dívida pública.
“Vai indo…”
Era março de 2008 quando o presidente do BC, Henrique Meirelles, convidou um importante diretor da instituição para jantar num restaurante de Miami. Ambos participavam, na cidade americana, da reunião anual do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O objetivo era explicar que, dessa vez, seria difícil segurar a pressão do governo contra o início de um novo ciclo de aperto monetário.
O presidente do BC alegou que não havia clima no governo para aumento dos juros. Num dado momento da conversa, sugeriu que ele, aquele diretor e um terceiro colega pedissem demissão. Seria uma forma, justificou, de os três não se submeterem à pressão do governo. O diretor ficou surpreso com a proposta, mas aguardou a frase seguinte do chefe para entender o real propósito da conversa.
“Vai indo que depois eu vou”, propôs Meirelles, ressalvando, em seguida, que “trâmites burocráticos” o obrigariam a permanecer no cargo por mais algum tempo, após a saída dos dois auxiliares. A reação do diretor também surpreendeu Meirelles: “O que é isso, presidente? Não vamos fazer uma coisa dessas com o senhor. Seria uma desfeita muito grande. Sairemos todos juntos”.
O colóquio se encerrou ali. Meirelles disse ao interlocutor que conversaria com o presidente Lula na volta ao Brasil. O diretor saiu do jantar com a nítida impressão de que retornaria ao país sem saber se continuava diretor. O episódio marcou o período mais conturbado da gestão de Meirelles à frente do Banco Central.
De volta a Brasília, o presidente do BC comandou a reunião do Copom que, no dia 16 de abril de 2008, contrariando todas as pressões sofridas até ali, aumentou a taxa Selic de 11,25% para 11,75% ao ano. Nos dias seguintes, chegou a acreditar que Lula o demitiria. Além disso, ele sabia que o ministro da Fazenda, Guido Mantega, pressionava o presidente para substituí-lo pelo economista Luiz Gonzaga Belluzzo.
Esse drama começou a se desenhar alguns meses antes, quando o BC, utilizando seus códigos de comunicação, passou a sinalizar ao mercado que voltaria a aumentar os juros. O movimento já era esperado e alguns participantes do mercado acreditavam que estava vindo tarde demais.
O Copom passara dois anos – de outubro de 2005 a setembro de 2007 – reduzindo os juros, que recuaram de 19,5% para 11,25% ao ano. A taxa foi mantida nesse patamar até março de 2008. No período, a economia viveu o seu momento mais luminoso na era Lula. O PIB crescia a 6% ao ano, com a inflação sob controle – em 2007, o IPCA atingiu a meta (4,46%).
O problema é que, assim como ocorreu em 2004, a inflação começou a mostrar sinais preocupantes de aceleração. Quando decidiu interromper a queda dos juros em outubro de 2007, o Comitê já o fez porque percebeu que a economia estava muito aquecida. No fim do ano, ficou claro que seria necessária uma nova rodada de aperto monetário.
Os códigos do Copom
No início de 2008, o diretor de Política Econômica do BC, Mário Mesquita, sugeriu a Meirelles que se fizesse um ajuste preventivo na Selic. Seria uma forma de promover uma aterrissagem suave da economia. Para tanto, seria necessário preparar o mercado para a alta de juros que viria adiante.
A boa comunicação com os agentes econômicos é crucial para o funcionamento do regime de metas. É por meio dela que o BC gerencia as expectativas do mercado, trazendo-as para sua leitura da economia. O objetivo do banco não é surpreender o mercado, mas dar previsibilidade a seus movimentos.
O atual código de comunicação do Copom foi desenvolvido por Afonso Bevilaqua, diretor de Política Econômica entre julho de 2003 e março de 2007, e aperfeiçoado por Mesquita. Por esse código, o aviso ao mercado de que vem aumento de juros no horizonte é feito por meio de duas reuniões.
Na primeira, através do comunicado divulgado nos dias da reunião do Copom, os diretores afirmam que vão “acompanhar” a evolução da economia. Na ata dessa reunião, divulgada sempre oito dias depois, eles apertam a linguagem. No comunicado da reunião seguinte do Copom, o BC diz que vai “monitorar atentamente” o cenário econômico. Na ata da semana seguinte, há um novo aperto na linguagem. No terceiro encontro do Comitê, ocorre o aumento dos juros.
A ofensiva de Mantega
Assim como o mercado, Mantega e sua equipe entendem muito bem os códigos do Copom. Na ata da reunião de janeiro de 2008, estava escrito: “O Comitê irá acompanhar a evolução do cenário macroeconômico (…)”. Na ata do encontro seguinte, em março, veio o sinal derradeiro: “O Comitê irá monitorar atentamente (…)”.
Inconformado, Mantega foi à luta. Aproveitando-se do fato de que Meirelles estava de férias no início de março daquele ano, convocou o diretor Mário Mesquita para uma reunião na Fazenda. Durante o colóquio, sem deixar o interlocutor dizer uma palavra, falou durante 40 minutos sobre as hipóteses que o levavam a crer que não seria necessário elevar os juros naquele momento.
Tendo entrado mudo e saído calado da conversa, Mesquita ignorou os argumentos do ministro. Dias depois, deu entrevista coletiva para anunciar o Relatório de Inflação de março e praticamente confirmou que os juros subiriam na reunião de abril. Mantega se sentiu pessoalmente afrontado e queixou-se a Meirelles. Considerou um “absurdo” um funcionário de segundo escalão desautorizá-lo daquela maneira.
Ainda era março quando, durante reunião de Lula com conselheiros informais, entre os quais Belluzzo e o ex-ministro Delfim Netto, Mantega expôs, na presença de Meirelles, os riscos de o Brasil voltar a gerar déficits elevados nas contas externas. Durante o encontro, previu-se que, dali a dois anos, a elevação do déficit provocaria uma forte desvalorização do real e, por consequência, pressão inflacionária. Em resposta, o Banco Central jogaria a taxa de juros na lua e a economia entraria em depressão.
Era o pior dos mundos para Lula – afinal, seu projeto prioritário era eleger o sucessor a qualquer custo. De maneira sub-reptícia, participantes da reunião sugeriram ao presidente a mudança da política econômica. O modelo mencionado era o da Argentina, que naquele momento crescia de maneira veloz, com juros negativos e câmbio prefixado e desvalorizado, apesar da inflação alta.
Aqueles encontros eram constrangedores para o presidente do BC pois, como autoridade monetária, ele tem “dever fiduciário”. Como havia consultores privados nos convescotes, Meirelles evitava emitir opiniões que sugerissem aos presentes futuras decisões do BC.
Medo de crescimento
Um terceiro movimento de Mantega, para tentar evitar a alta dos juros, foi procurar convencer o presidente da República a aprovar medidas de controle do crédito. Lula rejeitou a sugestão. O ministro, então, decidiu chamar os principais banqueiros do país para uma reunião em Brasília, com a presença dos diretores do BC Mário Mesquita, Mário Torós (Política Monetária) e Alexandre Tombini (Normas). No encontro, Mantega reconheceu que havia um problema de inflação, mas disse que não seria possível subir os juros e que seria preciso resolvê-lo com restrições ao crédito.
Não satisfeito, no início de abril, durante reunião do chamado Conselhão, instância criada por Lula para reunir empresários no Palácio do Planalto com alguma periodicidade, o ministro deu uma estocada na turma do BC. “Os ortodoxos costumam ter medo do crescimento. Acham que traz desequilíbrios econômicos”, afirmou.
A tese defendida pela Fazenda era de que o aumento da inflação, naquele momento, decorria da alta sazonal dos preços de alimentos. De tanto ouvir o argumento, Mesquita pediu a Altamir Lopes, chefe do Departamento Econômico do BC, para retirar do IPCA os cinco itens que mais o pressionavam naquele momento e também os cinco que mais caíam. O resultado foi o mesmo. Em qualquer medida de núcleo, a inflação estava subindo.
O tempo mostrou que o BC estava certo. A despeito das pressões do governo, o Copom aumentou os juros em abril e nos meses seguintes, até setembro de 2008. No dia 15 daquele mês, o banco americano Lehman Brothers quebrou e a crise atingiu o Brasil. A economia teve uma parada brusca no último trimestre, mas, mesmo assim, o IPCA fechou o ano em 5,9%, apenas 0,6 ponto percentual abaixo do limite máximo de tolerância do regime de metas. Nos 12 meses concluídos em outubro, batera em 6,41%, depois de ter iniciado o ano em 4,56%. Como estava convencido de que a meta seria descumprida, Mesquita já tinha começado a escrever a carta aberta ao ministro da Fazenda, explicando os motivos da inadimplência. Por causa da crise, a carta acabou não sendo necessária.
“Viu, Meirelles?”
Durante a cerimônia, Mantega apresentou cenários para a taxa de juros nos anos seguintes e aproveitou o momento para fustigar o presidente do BC. “A primeira conclusão é que o mercado está esperando uma redução da taxa Selic. A continuação, viu, Meirelles?”, disse Mantega, diante de uma plateia de empresários, ministros e parlamentares.
O gesto foi entendido pela diretoria do BC como uma tentativa de constranger o Copom, que já vinha discutindo, internamente, a possibilidade de diminuir o ritmo de queda da Selic, de 0,5 para 0,25 ponto percentual. Na ata da última reunião de 2006, o Comitê emitira o primeiro sinal ao afirmar que acompanharia “atentamente” a evolução da inflação nos meses seguintes.
O Copom vinha reduzindo os juros desde setembro de 2005. No fim de 2006, o BC constatou que a economia estava decolando. A inflação, que em 2006 caiu ao menor patamar da história do regime de metas – 3,14% -, começava a ficar saliente.
Ignorando a admoestação de Mantega, no dia 24 de janeiro de 2007, dois dias depois do lançamento do PAC, o Copom reduziu o ritmo de corte da Selic, de 13,25% para 13% ao ano. Ali, as relações entre Fazenda e BC, que já não eram boas, azedaram de vez.
A primeira crise ninguém esquece
O primeiro momento de ameaça à autonomia do BC, no governo Lula, ocorreu em setembro de 2004. Até então, o banco vivera um período de trégua, para contornar a crise de 2003, ano em que o presidente Lula assumiu o poder. Para combater uma inflação que, nos 12 meses acumulados até maio, chegara a 17,24%, o Copom elevou os juros a 26,5% ao ano. À medida que as expectativas de inflação foram melhorando, o Comitê foi diminuindo a Selic.
Em abril de 2004, a taxa caiu a 16% ao ano e ficou nesse patamar nos quatro meses seguintes. Já em meados do ano, o BC constatou que a economia havia superado a depressão de 2003 e acelerava numa velocidade insustentável. A inflação corrente anualizada, que vinha cedendo desde maio do ano anterior, voltara a crescer. Depois de cair de 17,24% em maio de 2003 para 5,15% nos 12 meses acumulados até maio de 2004, tornara a subir, chegando a 7,18% em agosto daquele ano. As expectativas se deterioravam.
O BC começou, então, a sinalizar ao mercado que voltaria, em breve, a elevar os juros. O aviso provocou grande mal-estar no governo. Por causa das medidas de ajuste fiscal e do arrocho monetário, 2003 tinha sido um ano difícil para o presidente Lula. O PIB avançara apenas 1,15%. O segundo ano do mandato começara com perspectivas bem melhores, com a economia acelerando – em 2004, o crescimento atingiu 5,71%.
O receio de integrantes do governo era de que a expansão de 2004 fosse abortada por “excesso de conservadorismo” do Copom. Além disso, aquele era um ano eleitoral, em que estava em disputa a reeleição da então prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, do PT, tendo como adversário José Serra, do PSDB. Derrotada no pleito, Marta responsabilizou a política econômica do governo pelo malogro.
As críticas ao BC pipocavam de todos os lados, da diretoria da Petrobras ao então poderoso ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu. Internamente, embora não fossem alvos diretos daquela pressão política, os diretores do BC começaram a temer pela manutenção da autonomia.
Os sinais de insatisfação com o banco eram evidentes. Indicado em julho de 2004 para assumir a diretoria de Política Monetária, o economista Rodrigo Azevedo, oriundo do mercado – ele veio do banco Credit Suisse First Boston -, teve que esperar três meses para ser sabatinado pelo Senado. Os amigos brincavam dizendo que ele passara por quarentena na entrada e na saída do BC, mas a da entrada não tinha sido remunerada.
Meirelles entendeu a conversa como um pedido velado de demissão. Preocupado, deu garantias de que a autonomia estava assegurada. Na reunião do dia 15, o Copom aumentou a taxa de juros para 16,25% ao ano. O novo aperto monetário, o segundo da era Lula, estava apenas começando. Apesar das garantias dadas por Meirelles, nos meses seguintes as críticas ao BC não cessaram.
Interessado em conquistar apoio político para sua diretoria, o presidente do BC conseguiu agendar, com a ajuda do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, um encontro dos diretores com o presidente Lula, em dezembro de 2004. O objetivo era distender as relações. Na reunião, Meirelles e os diretores mostraram a Lula que a inflação é um “mecanismo perverso de distribuição de renda às avessas”. Beneficia os mais ricos e penaliza os pobres. A conversa foi boa, mas seus frutos não foram duradouros, como se viu depois.
A operação Palocci
O aperto monetário iniciado em setembro de 2004 se estendeu até setembro de 2005, o ano mais difícil, do ponto de vista político, para o presidente Lula. Foi o ano do escândalo do mensalão, quando experimentou os níveis mais baixos de popularidade. O BC conseguiu domar a inflação, derrubando-a para 5,7%, depois de fechar 2004 em 7,6%, mas o ajuste teve um preço. O PIB cresceu apenas 3,16% em 2005.
Por causa da crise política e do ajuste na economia, a pressão sobre o BC se intensificou. A queda do PIB no terceiro trimestre (-0,98%), em meio à fase mais aguda da crise política, levou o então presidente do BNDES, Guido Mantega, a responsabilizar o Banco Central pelo resultado e particularmente Afonso Bevilaqua, deixando claro que a ira do governo era dirigida exclusivamente aos diretores do BC originários do mercado.
Ao perceber que não conseguiria conter a pressão por muito mais tempo, Palocci iniciou em 2005 um movimento em dois atos. Inspirado na máxima do escritor italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa, segundo a qual é preciso que alguma coisa mude para que tudo fique como está, Palocci convidou o então diretor executivo do Brasil no Fundo Monetário Internacional (FMI), Murilo Portugal, para retornar ao Brasil e assumir a secretaria-executiva da Fazenda.
O plano de Palocci era, num segundo momento, deslocar Murilo Portugal para a presidência do BC e Henrique Meirelles, para o Ministério do Planejamento. Meirelles sabia do plano e estava conformado, tanto que já falava, em conversas reservadas, da “importância do Planejamento”. As mudanças não caracterizariam, pelo menos no papel, o enfraquecimento do BC. A parte mais difícil da operação seria demitir o principal alvo da cólera governista – Afonso Bevilaqua.
Com a queda de Palocci, Guido Mantega, o maior oponente no governo à política monetária, ascendeu ao cargo de ministro de Fazenda. Dias difíceis estavam por vir.
Bevilaqua: a falsa moeda de troca
Com a frustração do segundo ato da operação Palocci, Bevilaqua ficou no cargo, mas os ataques da artilharia do governo se intensificaram. Depois de três anos no cargo, Bevilaqua planejava deixar o banco. Por causa da ausência de mandato, diretores provenientes do mercado e da academia não costumam levar suas famílias para Brasília, afinal, a perda do emprego é sempre iminente. Na capital federal, eles moram em hotéis.
O trabalho no BC afastou Bevilaqua do convívio diário com o filho de três anos. O salário – R$ 8.234,00, na ocasião -, menor que o de um funcionário em início de carreira (cerca de R$ 14 mil), também não ajudava muito, embora a passagem pela instituição seja encarada como um investimento no futuro; são raros os casos de ex-diretores que, depois de deixar o BC, não fazem fortuna no setor privado.
Os rumores de que Bevilaqua deixaria o BC avolumaram-se em março de 2006, quando Palocci deixou a Fazenda. De fato, ao longo do ano, ele tratou várias vezes da saída com o presidente Henrique Meirelles. Ficou acertado, porém, que a estratégia seria evitar que a saída fosse vista como uma capitulação do BC às pressões da Fazenda.
Na transição do primeiro para o segundo mandato de Lula, novos rumores deram conta de que a saída de Bevilaqua seria a moeda de troca para a permanência de Meirelles. Para desmentir essa tese uma vez mais, Bevilaqua permaneceu no BC até março de 2007, tendo, inclusive, participado da polêmica reunião do Copom em janeiro e do primeiro dia do encontro de março.
No anúncio da saída do diretor, questionado se a demissão do seu “braço direito” o tornava mais exposto ao “fogo amigo” no governo, Meirelles deu a dimensão das pressões que sofreu desde sempre: “Ele [o fogo amigo] nunca me abandonou”.
O fim do equilíbrio
Embora Meirelles tenha feito questão de deixar claro que o BC não estava se enfraquecendo, a saída de Bevilaqua foi o prenúncio de uma nova fase no Copom. Quando Ilan Goldfajn, remanescente da gestão Armínio Fraga, deixou a diretoria de Política Econômica em maio de 2003, Meirelles trouxe Bevilaqua e Loyo. Com isso, mostrou ao mercado que a autonomia concedida por Lula era para valer.
A diretoria do BC passou a ter, naquela época, quatro diretores oriundos do mercado e da academia e quatro da instituição. Como Meirelles também é oriundo do mercado, houve, na maior parte do primeiro mandato de Lula, predomínio de dirigentes de fora da casa. No segundo mandato, esse quadro inverteu-se inteiramente.
A partir de 2007, os diretores de fora que saíram do BC foram substituídos por funcionários do banco. Com a demissão de Mário Torós, em novembro de 2009, restou apenas Mário Mesquita, mas este também deixou o BC em março deste ano.
Ninguém duvida, mesmo no mercado, que os funcionários do Banco Central sejam, em geral, qualificados e representem uma ilha de excelência em Brasília. Ainda assim, o seu domínio no Copom, sem mandato, resulta num desequilíbrio que ameaça a autonomia operacional do BC. Assim como uma diretoria dominada por nomes do mercado poderia ser capturada pelos interesses das instituições financeiras, uma com a predominância de funcionários de carreira pode ser controlada pelos interesses políticos do governo.
Os números da economia brasileira mostram que a autonomia, na prática, funcionou nos anos recentes. Em oito anos, graças à atuação do BC, o país superou duas graves crises – em 2003 e 2008 -, aumentou a sua média de crescimento e controlou a inflação, embora ela ainda esteja num patamar elevado quando comparada a padrões internacionais.
De olho nos jornais de Goiânia
Nos oito anos à frente do Banco Central, Meirelles procurou amortecer as pressões políticas que lhe chegavam de todos os lados. Ele operou, durante todo esse tempo, para evitar que assuntos políticos chegassem ao Copom. Não há sequer um diretor oriundo do mercado ou da academia que tenha recebido qualquer apelo dele para votar desta ou daquela maneira.
Praticamente não houve, durante todo esse período, uma reunião do Comitê sem que, antes, Meirelles conversasse com o presidente Lula. As conversas nem sempre foram fáceis. Em dia de Copom, dois diretores que moravam no Hotel Blue Tree (hoje, Royal Tulip), vizinho do Palácio da Alvorada às margens do Lago Paranoá, viram mais de uma vez Meirelles chegar à residência oficial do presidente da República em sua SUV Hilux.
Nos dias anteriores à reunião do Comitê, o presidente do BC procurava conversar individualmente com cada diretor. Nessas conversas, falava do quadro político, mas eximia-se de dar orientações. Por outro lado, em alguns momentos, Meirelles dividiu-se entre dois personagens: o banqueiro central que precisava zelar por sua reputação técnica e o político que ambicionava entrar em disputas eleitorais.
O presidente do BC acalentou, por exemplo, disputar eleições em seu Estado natal. Seu último projeto político-eleitoral, frustrado pelas artimanhas dos líderes do seu partido, o PMDB, foi ser vice na chapa de Dilma Rousseff à Presidência da República. Para saber dos interesses políticos do chefe, os diretores cultivaram o hábito de ler os jornais de Goiânia.
Para alguns diretores, Meirelles “passou da conta” em alguns momentos por causa de suas aspirações políticas, mas nada que pudesse pôr em risco a estabilidade da economia brasileira.
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